Entre terça (28) e quarta-feira (29), forças de segurança deflagraram uma megaoperação nos complexos da Penha e do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro, descrita por diferentes órgãos e veículos como a mais letal já registrada no estado. Os alvos principais incluíam o cumprimento de cerca de 100 mandados de prisão contra integrantes do Comando Vermelho (CV) e a captura de lideranças. Até este horário, os números variam conforme a fonte e seguem em consolidação pelas autoridades.
O que se sabe até agora (balanço preliminar e em atualização)
Mortos: as contagens oscilam. No dia 28/10, balanço da Agência Brasil registrou 64 mortos e 81 presos. Na manhã de 29/10, a Polícia Civil elevou o total de mortos para 119 (quatro policiais e 115 suspeitos). A Agência Senado publicou que a Comissão de Direitos Humanos (CDH) trabalha com 132 mortos como referência para cobrança de informações oficiais. Veículos internacionais também repercutem a cifra de 132 como estimativa, à espera de consolidação pericial e identificação pelo IML.
Presos: balanços iniciais apontam 81 prisões (número pode ser atualizado conforme a checagem de autos e mandados).Apreensões: relatos preliminares indicam dezenas de armas (incluindo fuzis) e munições; veículos internacionais citam 90+ fuzis e apreensão de drogas, a confirmar nos relatórios finais. Esses dados ainda dependem de perícia e inventário oficial para fechamento.
Participação e tática: efetivo numeroso, uso de blindados e apoio aéreo; ações simultâneas nos dois complexos, com foco em mandados judiciais e prisões qualificadas.
Reações institucionais: a CDH do Senado informou que oficiará o governo do RJ por detalhes operacionais, cadeia de custódia, protocolos de proteção a vulneráveis e consolidação de números. O Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos disse estar “horrorizado” e pediu investigação independente.
Nota editorial: as diferenças entre contagens decorrem de achados posteriores (inclusive em áreas de mata), tramitação de registros no IML, cruzamento de autos e resultados de perícias. É esperada revisão das cifras nas próximas horas, até a publicação do balanço consolidado com identificação formal.
Contexto de série histórica
Antes da operação, o RJ vinha registrando queda em indicadores de letalidade violenta em 2025 — 20,5% a menos em julho/2025 vs. julho/2024, segundo dados divulgados à época; ainda assim, as séries sofrem quebras em eventos críticos como o atual.
Análise jurídica: como o Estado deve avaliar e responder
A leitura jurídica da operação exige separar evento, processo e resultado, mantendo foco em conformidade, integridade probatória e prestação de contas. A seguir, os pilares essenciais para uma resposta estatal técnica e juridicamente sólida.
1) Cadeia de custódia e qualidade da prova (CPP, arts. 158-A a 158-F)
A cadeia de custódia organiza todo o percurso dos vestígios — identificação, coleta, acondicionamento, armazenamento, processamento e apresentação — até sua eventual utilização em juízo. Em operações com muitas apreensões (armas, munições, mídias, celulares) e extensa cena de crime (becos, áreas de mata), a governança probatória é determinante para:
Admissibilidade da prova (evitar nulidades por lacunas de documentação);
Rastreabilidade (quem coletou, quando, onde e como);
Coerência entre laudos periciais, BOs, autos e materialidade;
Exportação forense de mídias com trilhas de auditoria (hash, logs).
Procedimentos padronizados, lacres, formulários específicos de cadeia de custódia e perícia on-call são boas práticas esperadas. Em ações com alta letalidade, balística comparativa e exame de local tornam-se centrais para a reconstrução dos fatos.
2) Transparência e controle externo (Lei 12.527/2011 — LAI)
A LAI estabelece publicidade como regra e sigilo como exceção motivada. Para operações dessa envergadura, recomenda-se:
Relatório pós-operação com dados agregados, metodologia de contagem, georreferenciamento macro de ocorrências e justificativas para eventual sigilo (para não prejudicar investigações);
Prazos e fundamentação legal ao responder pedidos de informação;
Publicidade ativa de indicadores (apreensões, prisões, mandados), respeitando sigilo de peças investigativas.
A transparência não conflita com a investigação quando guiada por dados agregados e respeito ao devido processo legal. Em paralelo, órgãos de controle (Alerj, MP, Defensoria, CDH do Senado) já sinalizam acompanhamento e requisição de informações.
3) Tratamento de dados pessoais (LGPD — regime setorial de segurança pública)
No contexto de segurança pública, o tratamento de dados segue bases legais próprias e salvaguardas específicas: finalidade, necessidade, registro de acesso, retenção/descarte e protocolos para dados sensíveis (biometria, saúde, filiação etc.). Sistemas de reconhecimento, analytics ou armazenamento de mídias devem garantir:
Interoperabilidade com trilhas de auditoria;
Governança de acesso (perfis, logs);
Anonimização e minimização nos relatórios públicos.
4) Abuso de autoridade e deveres funcionais (Lei 13.869/2019)
A magnitude letal e as divergências de contagem têm repercussão jurídica. A Lei de Abuso de Autoridade fixa limites e deveres: cumprimento de mandados, observância do uso escalonado da força, comunicação imediata de prisões, integridade no trato de custodiados e proibição de práticas vexatórias ou ilegais. Diante de suspeitas ou denúncias, cabem investigações administrativas e criminais, com observância da presunção de inocência e do devido processo. A manifestação do Alto Comissariado da ONU intensifica a expectativa por apuração independente.
5) Integração federativa e governança (Lei 13.675/2018 — SUSP)
O Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) orienta integração entre forças, padronização mínima de protocolos e atuação coordenada baseada em informações de inteligência. Em operações de grande porte, as boas práticas incluem:
Matriz RACI (Responsável, Aprovador, Consultado, Informado) para decisões críticas;
Briefing e debriefing formais, com atas e logs de decisão;
Centros de operações integrados (PM, PC, peritos, saúde, assistência social e, conforme o caso, articulação com MP/Defensoria para efeitos colaterais sobre a população);
Planos de contingência para escolas, unidades de saúde e mobilidade.
A CDH do Senado já comunicou que quer saber, inclusive, se protocolos de proteção a crianças foram observados — ponto sensível em operações em áreas densamente povoadas.
6) Compras públicas de tecnologia e prova digital (Lei 14.133/2021)
Para consolidar evidências e reduzir litigiosidade, contratações de soluções tecnológicas (câmeras operacionais, LPR, cadeia de custódia digital, plataformas de analytics) devem trazer requisitos técnicos verificáveis:
Criptografia, integridade, hash, carimbo do tempo e trilha de auditoria;
Portabilidade probatória (exportação em formato aceito por ferramentas forenses);
Interoperabilidade e governança de logs;
Política de retenção e descarte alinhada à legislação;
Matriz de riscos e SLAs contratuais com indicadores de desempenho.
7) Medindo “resultado” sem viés político
Para além de narrativas, o Estado precisa de indicadores auditáveis:
Curto prazo (4–8 semanas): variação de roubos (rua, veículos, carga) nas áreas impactadas; mandados cumpridos; prisões qualificadas (logística/financeiro); armas e mídias apreendidas com custódia íntegra.
Médio prazo (8–24 semanas): letalidade violenta e homicídios nas regiões-alvo e entorno; retomada de serviços legais (mobilidade, comércio); evolução de investigações e ações penais com provas robustas; bloqueio de fluxos financeiros das facções.
Qualidade probatória: coerência entre laudos, BOs, autos, balística e registros audiovisuais (quando existentes).
Indicadores do ISP-RJ divulgados ao longo de 2025 (queda de 20,5% em julho vs. 2024) sugerem que a trajetória pode melhorar ou piorar conforme o pós-operação — períodos de pico costumam “quebrar” a série, exigindo monitoramento cuidadoso para distinguir efeito pontual de tendência.
8) Prestação de contas e relatórios pós-operação
A robustez da resposta estatal será percebida na qualidade do relatório pós-operação, que deve contemplar:
Metodologia de contagem (fontes, janelas de coleta, consolidação IML/perícia);
Mapa macro de ocorrências e vínculo com mandados;
Inventário de apreensões com cadeia de custódia;
Indicadores (curto/médio prazo) e linhas de base;
Protocolos sociais (avisos à população, rotas de emergência, proteção a vulneráveis);
Justificativas de sigilo legal, quando cabíveis, e prazos de novas publicações.
Essa prestação de contas equilibra dever de transparência com resguardo investigativo, atende à LAI e produz tecnicidade para embasar o controle interno/externo e decisões administrativas futuras.
Quadro-síntese: riscos e salvaguardas (visão prática)
Risco probatório: falhas na cadeia de custódia → salvaguarda: padronização, lacres, perícia on-call, logs.
Risco jurídico (abuso de autoridade): uso da força fora de protocolo → salvaguarda: capacitação, registro audiovisual, auditoria de campo.
Risco de dados: tratamento indevido de informações pessoais → salvaguarda: base legal setorial, minimização e registro de acesso.
Risco reputacional: divulgação sem método → salvaguarda: relatório com metodologia, dados agregados e justificativa de sigilo.
Risco operacional: fragmentação entre órgãos → salvaguarda: SUSP, matriz RACI, briefing/debriefing com atas.
Conclusão: do evento à evidência
A operação no RJ projeta desafios imediatos para o Estado: consolidar números, qualificar a prova, demonstrar conformidade e medir resultado com indicadores. O pós-operação — mais do que o dia do confronto — definirá a efetividade administrativa, a resiliência probatória e a legitimidade institucional perante a sociedade e os órgãos de controle. O caminho é inequívoco: processo, prova e prestação de contas.
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