Nos últimos dias, repercutiram na mídia casos envolvendo mulheres que levaram bebês reborn — bonecos hiper-realistas — a unidades do Sistema Único de Saúde (SUS), em situações que, em alguns casos, simularam atendimentos pediátricos. O episódio não apenas gerou perplexidade social, como também reacendeu discussões jurídicas relevantes, especialmente no tocante à proteção da dignidade da pessoa humana, à exposição pública e aos limites legais do constrangimento.
O debate ultrapassa o senso comum e exige uma análise jurídica rigorosa sobre até que ponto a conduta de terceiros — sejam profissionais de saúde, jornalistas ou membros da sociedade civil — pode gerar responsabilização civil, administrativa e até penal.
O Direito Fundamental à Dignidade da Pessoa Humana
O artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988 (CF/88) estabelece como fundamento da República a dignidade da pessoa humana, princípio estruturante de todo o ordenamento jurídico brasileiro.
A dignidade não se submete a juízos de valor subjetivos sobre condutas que, ainda que destoem de padrões sociais, não representam ilícito. Isso inclui, portanto, práticas como o cuidado afetivo com bebês reborn, que, embora possam ser vistas como excentricidade para alguns, não representam qualquer violação jurídica.
Privacidade, Imagem, Honra e Intimidade
O artigo 5º, incisos V e X, da CF/88 garante:
O direito à indenização por dano material, moral ou à imagem;
A inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas.
Assim, qualquer exposição não autorizada — seja por meio de imagens, vídeos, áudios ou relatos depreciativos — caracteriza violação direta desses dispositivos constitucionais.
? Jurisprudência consolidada reconhece que a veiculação de imagens ou informações sem consentimento, especialmente em contextos que possam gerar constrangimento ou ridicularização, enseja indenização por danos morais.
Constrangimento Ilegal (Esfera Penal)
O artigo 146 do Código Penal Brasileiro tipifica o crime de constrangimento ilegal:
“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver, por qualquer meio, reduzido a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda.”
Pena: detenção de três meses a um ano, ou multa.
? Aplicabilidade no contexto:
Se uma pessoa for coagida, ridicularizada ou forçada — verbalmente, fisicamente ou psicologicamente — a não acessar um serviço público (como o SUS), mesmo que sem um paciente real, ou for exposta publicamente a situações vexatórias, pode configurar crime de constrangimento ilegal.
Responsabilidade Civil: Dano Moral
Nos termos do artigo 186 do Código Civil, configura ato ilícito:
“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem.”
E o artigo 927 complementa:
“Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”
Portanto, se houver exposição, humilhação, gravação não autorizada, ou divulgação de situações que gerem sofrimento ou desgaste psíquico a essas pessoas, há claro dever de reparação.
Proteção da Saúde Mental: Lei Antimanicomial e Direitos das Pessoas em Sofrimento Psíquico
A Lei 10.216/2001 (Lei Antimanicomial) protege os direitos das pessoas com transtornos mentais, reforçando o princípio do tratamento humanizado, livre de qualquer forma de violência, discriminação ou constrangimento.
Se o comportamento de quem leva um bebê reborn estiver relacionado a um quadro de sofrimento psíquico — o que não pode ser presumido —, a proteção legal se torna ainda mais rigorosa, vedando qualquer forma de exposição pública, ridicularização ou tratamento degradante.
Exposição na Mídia e nas Redes Sociais
A utilização de imagem ou relato que exponha essas pessoas sem autorização pode configurar:
Dano moral (esfera cível);
Crimes contra a honra (injúria, calúnia e difamação, arts. 138, 139 e 140 do CP);
Violação de direito de imagem (CF, art. 5º, X; CC, arts. 20 e 21).
?? Importante:
Inclusive profissionais de saúde, caso façam registros (foto, vídeo, áudio) no exercício da função e divulguem sem consentimento, podem ser responsabilizados civil e penalmente, além de sofrer sanções administrativas e disciplinares (ética profissional).
Conclusão
A atuação jurídica frente a casos como esse deve ser pautada pela proteção intransigente dos direitos fundamentais, sem espaço para julgamentos morais ou culturais. A conduta de levar um bebê reborn a uma unidade de saúde não é, por si só, ilícita, tampouco pode ser usada como justificativa para constrangimento, humilhação ou qualquer forma de exposição indevida.
O Direito, como instrumento de proteção social, deve assegurar que situações como essas sejam tratadas com o rigor técnico necessário, resguardando a dignidade da pessoa humana, a privacidade e os direitos de personalidade, pilares do ordenamento jurídico brasileiro.